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Luz Azul cortina

Ricardo Rocha Bastos

Coordenador do Grupo Português de Ergoftalmologia (Sociedade Portuguesa de Oftalmologia)

Vidas digitais: os ecrãs tomaram conta dos dias e isso tem consequências na visão

O futuro parece estar traçado e tudo passa por um uso cada vez maior e mais intensivo de dispositivos eletrónicos. Para colher os benefícios de uma vida mais digital e proteger dos possíveis danos é mandatório adotar uma abordagem preventiva. O especialista em oftalmologia Ricardo Rocha Bastos explica de que forma os ecrãs afetam a saúde ocular.

Na sociedade atual, o sistema visual é estimulado e solicitado de forma intensa e crescente, tanto na atividade profissional como nas atividades de lazer e entretenimento. Para colocarmos esta questão em perspetiva, podemos pensar que numa vida laboral de 40 anos e uma média relativamente modesta de quatro horas diárias ao computador, totalizamos cerca de 37.000 horas a utilizar este dispositivo digital. Claro está que nestas contas não entram os intervalos no smartphone, os jogos no tablet, os filmes e as séries na TV, etc.

A massificação das novas tecnologias digitais e a acessibilidade às crianças têm igualmente sido alvo de preocupação e interesse por parte das autoridades de saúde. Neste sentido, habitualmente, não se recomenda o contacto frequente com dispositivos eletrónicos antes dos 18 meses de idade e, posteriormente, defende-se que a sua utilização seja restringida a uma hora por dia de conteúdos didáticos, supervisionados pelos pais até aos 5 anos.

“Quando estamos horas ao computador, tablet ou smartphone, é frequente o aparecimento de sintomas oculares e visuais com repercussão variável quer no nosso bem-estar, quer no rendimento profissional.”

Perigos da vida digital

Será que esta exigência e mudança de paradigma visual dos dias que correm não trazem consequências para a nossa visão? E serão essas consequências temporárias ou permanentes? Há algo que possamos fazer para evitar que isso aconteça? Estas são questões que os pacientes frequentemente colocam, e bem, na consulta de oftalmologia. De facto, quando estamos horas ao computador, tablet ou smartphone,é frequente o aparecimento de sintomas oculares e visuais com repercussão variável quer no nosso bem-estar, quer no rendimento profissional. No seu conjunto, podemos classificar estas alterações como Síndrome da Visão do Computador,a qual, como seria de esperar, tem uma prevalência elevada atualmente. Um estudo norte-americano com 70 milhões de trabalhadores observou que 90% dos mesmos utilizavam o computador mais de duas horas por dia e 60% mais de cinco horas, reportando uma prevalência de 65% desta síndrome entre os indivíduos estudados.

Os sintomas referidos com maior frequência estão relacionados com a superfície ocular e “olho seco” (ardência nos olhos, olho vermelho, lacrimejo, irritação e sensação de corpo estranho, intolerância a lentes de contacto) e com a visão propriamente dita (visão turva para perto no final do dia, lentidão na focagem, visão turva para longe e, mais raramente, diplopia ou “visão dupla”).

Sintomas da Síndrome da Visão do Computador

- Ardência - Olhos secos e vermelhos - Lacrimejo - Irritação e intolerância a lentes de contacto - Visão turva, para perto ou para longe - Lentidão na focagem - Visão dupla

“Apesar de frequentemente limitativos no dia a dia, os sintomas da superfície ocular e os sintomas visuais descritos são habitualmente transitórios e reversíveis.”

As alterações da superfície ocular são provocadas essencialmente por uma evaporação exagerada da nossa lágrima, a qual se deve, por sua vez, a uma diminuição do pestanejar típica durante a utilização de dispositivos eletrónicos, a uma leitura realizada predominantemente no plano horizontal e ao posicionamento frequente dos monitores num plano relativamente elevado face ao nosso eixo visual (as quais condicionam um aumento da fenda palpebral e da área de superfície ocular exposta).

Estes aspetos são ainda exacerbados por outros fatores extrínsecos como a utilização frequente de ar condicionado no local de trabalho, medicação para a hipertensão arterial (bloqueadores beta e diuréticos) ou alguns antidepressivos.

Em relação aos sintomas visuais, estes associam-se principalmente à reduzida distância de trabalho que pressupõe a utilização de dispositivos digitais e à necessidade de manter uma focagem contínua por períodos relativamente longos de tempo, constituindo um estímulo intenso do reflexo de acomodação-convergência. A focagem de objetos ao perto (acomodação) depende, em grande medida, de uma ação muscular, percebendo-se assim a fadiga ocular associada a esta síndrome. Apesar de frequentemente limitativos no dia a dia, os sintomas da superfície ocular e os sintomas visuais descritos são habitualmente transitórios e reversíveis.

“De um modo geral, quanto mais próximo estiver um objeto (por exemplo, um ecrã de computador), mais esforço os nossos olhos têm de fazer para o vermos.”

Conselhos para proteger os olhos

Sendo a Síndrome de Visão do Computador uma entidade clínica multifactorial, devemos abordar o seu tratamento de forma abrangente. Em relação aos sintomas de superfície ocular, a lubrificação ocular frequente, o correto posicionamento no trabalho, a atenção às condições de luminosidade e a preocupação com o pestanejar mais frequente são em grande medida eficazes.

No que diz respeito aos sintomas visuais, as pausas frequentes do trabalho de perto com tentativa de focar periodicamente um objeto ao longe durante curtos períodos de tempo têm um papel reconhecido na sensação de esforço ocular. No entanto, são muito frequentes as queixas de fadiga ocular secundárias à presença de um erro refrativo (necessidade de óculos) não corrigido ou hipocorrigido.

De um modo geral, e excluindo os indivíduos com miopia não corrigida, quanto mais próximo estiver um objeto (por exemplo, um ecrã de computador), mais esforço os nossos olhos têm de fazer para o vermos. Além disso, ao longo da 3ª, 4ª e 5ª década de vida notamos cada vez mais dificuldade em realizar este esforço que nos continua a ser exigido.

Neste sentido, ao longo dos últimos anos, temos observado o desenvolvimento e a utilização crescentes de lentes designadas digitais, as quais permitem a correção de necessidades refrativas com especial atenção para as distâncias de trabalho de perto e intermédio, tais como as que tipicamente verificamos com a utilização de dispositivos eletrónicos.

Este tipo de lente parte do pressuposto de que, ao longo do dia, alternamos frequentemente o nosso foco entre o longe e o perto e tem como objetivo reduzir a dependência do esforço de contração e relaxamento do músculo ciliar para a visão a essas distâncias, podendo apresentar mais que um poder refrativo ao longo de toda a lente.

“É necessário conhecer bem os sintomas da Síndrome de Visão do Computador, para melhor os enfrentarmos, adotando medidas preventivas ambientais e comportamentais.”

Entram ainda em consideração com o facto de que a orientação do olhar não é a mesma se estivermos a ver televisão, um monitor de computador, um livro ou o smartphone. Nestas últimas situações, temos tendência a utilizar a parte mais inferior das lentes dos óculos. Sendo que nas lentes monofocais comuns se pode verificar astigmatismo residual e alteração do poder refrativo nessa localização, a utilização prolongada desta zona ótica pode induzir desconforto e cansaço ocular acrescidos, algo que as lentes digitais tentam prevenir.

Apesar de não haver ainda evidência científica que suporte um dano real nas estruturas oculares com a crescente exposição à luz azul que testemunhamos no dia a dia (nos monitores de dispositivos eletrónicos, luzes de xénon e LED, por exemplo), esta tem sido uma preocupação crescente de algumas entidades de saúde internacionais, sendo frequente a utilização de tecnologias de filtro de luz azul nas lentes digitais.

Em conclusão, os dispositivos digitais vieram para ficar, e com eles novos desafios visuais como a Síndrome de Visão do Computador. Apesar de tipicamente temporários e reversíveis, os sintomas desta síndrome podem limitar de forma significativa o desempenho profissional de quem lida diariamente com estas tecnologias. É necessário conhecê-los bem, para melhor os enfrentarmos, adotando medidas preventivas ambientais e comportamentais, devidamente auxiliadas pelos melhores avanços técnicos que tivermos à nossa disposição.

[texto integral enviado pelo autor]